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Eros Volúsia (Heros Volúsia Machado- 1914/ 2004) foi uma dançarina brasileira nascida no Rio de Janeiro, aluna de Maria Olenewa na Escola de Bailados do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, hoje Escola Estadual Maria Olenewa. Estreou no Teatro Municipal e pouco depois podia ser considerada a inventora da dança brasileira. As danças místicas dos terreiros, os rituais indígenas, o samba, o frevo, o maxixe, o maracatu e o caboclinho de Pernambuco foram algumas das fontes de pesquisa artística da bailarina. Em uma de suas inúmeras entrevistas dadas à Revista O Cruzeiro, Eros Volúsia sintetizou sua missão artística: "Dei ao Brasil o que o Brasil não tinha, a sua dança clássica!"

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Um Vinho para Dionísio

Por Wilton Montenegro
Fotógrafo e artista

Wilton Montenegro

A cena é obscura, quase sem cor: pouca luz atravessa a névoa. Uma mulher com enorme saia rodada que esconde os pés, cabeça discretamente curvada e corpo levemente avançado sugerindo caminhada entra, como se deslizasse ou flutuasse, parecendo não tocar o chão: Cláudia Ramalho - que me trouxe à lembrança uma cena similar do filme “Playtime”, de Jacques Tati. Ainda estava com a mesma cara fascinada do ator/diretor quando, em seguida, no sentido inverso, outra saia rodada. E outra! *.

Sentido inverso é a aparência de contramão que faz o espetáculo “Arquitetura do samba – a dança do mestre sala e da porta bandeira”, encenado pela companhia Arquitetura do Movimento, na coreografia de Andréa Jabor, ela também uma das bailarinas. Vi em fevereiro de 2013 esta parte de uma trilogia do samba, criada em 2010. Com diferentes estilos, quatro bailarinas e suas longas saias giravam em cena como se possuídas por algum transe místico da fronteira dos mundos, como se numa inversão da dança sufi, a tanoura, praticada apenas por homens. Esses, os dervixes, com suas longas saias brancas giram entregues – um braço apontando para o céu e o outro para a terra, alternadamente, fazendo uma espécie de ponte com o mundo divino – até entrarem em êxtase.

Cena das Aspas
Entre eles, tudo acaba em transe. Aqui tudo acaba em samba!
Sem pretender fazer uma abordagem crítica nem uma resenha do que ocorre em cena, deixo apenas uma ou outra observação do que vi, para fazer uma reverência. Principio por notar que todas elas ao girar, fazem um quase imperceptível movimento de cabeça – ora quase parado, ora muito rápido – não correspondente ao giro do corpo, como se houvesse um delay – enquanto o corpo se vai a cabeça aparentemente continua a nos olhar e subitamente ela reencontra-o para girarem mais uma e uma e outra vez –, oposição ao êxtase, o autocontrole pondo ordem no caos mas deixando entrever levemente a tensão do desejo aparente na pele sob a veste.
Agora a névoa se dissipa e a luz traz a cor nas quatro mulheres; além delas, três homens de diferentes idades e estilos de dança, entram numa cena quase nua, composta por poucos instrumentos musicais e quatro ou cinco bandeiras. A rigor, o que se vê são sete bailarinos, sete formas diferentes de apresentar a dança do samba, do tradicional ao contemporâneo, com delicada harmonia. O espetáculo envolve pelo que apresenta da ideia de arquitetura, arcabouço de construção, de um evento na escola de samba: uma escola de mestre sala e porta bandeira. A apresentação, através de conflitos e desafios, tem seu ponto máximo, no meu entender, naquilo que é menos visível na dança: em todas as cenas que o mais velho deles participa com alguma das bailarinas, ele entrega a porta bandeira para outro mestre sala, conduzindo-a com tal gentileza que parece que as mãos nem se tocam, e são exatamente essas mãos quase invisíveis que possibilitam a leveza e a importância da bailarina. Ela é a porta bandeira, ela carrega e defende o pavilhão que representa a escola, e ele deve ser quem a apresenta ao público.


"...as mãos do velho mestre-sala conduziram todas as bailarinas..."
(Wilton Montenegro)
Ela deve brilhar, ele deve cortejá-la, saudá-la e protegê-la. A beleza desse momento tem um paralelo em música: alguém disse que o saxofonista Lester Young, o Prez (de President), tocava em
volta da cantora Billie Holiday, a quem chamava de Lady Day, como se ele fosse um mestre sala e ela fosse a porta bandeira. Acredito nisso.
Em todos os momentos, os braços e as mãos do velho mestre sala conduziram todas as bailarinas para apresentá-las ao público, uma a uma, sorrindo sempre para elas, nunca para a platéia, como se a alertar que a beleza estava nelas e na importância do que carregavam, não nele. E, todavia, fazia isto sem descuidar dos pés: era ali que estava a base do corpo e do samba.
Há alguns anos atrás, vi Paulinho da Viola dançar em cena o miudinho. Porém, ah, porém eu estava no teatro em uma posição desprivilegiada e não pude ver seus pés. Qual não foi minha surpresa, ao ver no espetáculo de agora, afinal, o que era o miudinho: devagar, devagarinho, a rara elegância e leveza dos passos curtos da dança. Aqui reverencio aquele mestre sala que parecia flutuar sem sair do chão: Mestre Dionísio.  
Mestre Dionísio dança
          a beleza de seu Miudinho
Algumas horas passadas do fim do espetáculo coincidiram de nos encontrarmos à mesma mesa de um botequim: eu, na cervejinha – ele, fazendo jus ao próprio nome, bebia uma caneca de vinho da casa.
Ao final da noite, gentilmente estendeu seu cartão de visita. Lá dizia:

Escola de Mestre-Sala, Porta-Bandeira e Porta-Estandarte Manoel Dionísio - RJ.
1ª Vara da Infância e da Juventude.
Entidade Filantrópica, Beneficente Sem Fins Lucrativos.
Um homem preocupado com a formação – de uma dança; com o futuro – dos jovens. E vice-versa. Um homem a quem todos chamam de mestre, ele próprio uma entidade, e que escreve no seu cartão apenas o que lhe é próprio: Manoel Dionísio. Poderia chamar-se Samba.
Rio de Janeiro, março de 2013.


* O elenco era composto pelas bailarinas Claudia Ramalho, Leticia Ramos e Lidia Larangeira, pelos bailarinos mestre-sala Hugo César e sapateador Leonardo Sandoval, por Mestre Dionísio e pela bailarina e coreógrafa Andrea Jabor.